A música que vem das árvores

Por André Sollitto | Fotos Rogério Albuquerque A poucos metros do Teatro Municipal de São Paulo,


Edição 14 - 02.05.19

Por André Sollitto | Fotos Rogério Albuquerque

A poucos metros do Teatro Municipal de São Paulo, Francisco Silva produz arcos para instrumentos de corda em um pequeno ateliê. É um archetier, ou arqueteiro, responsável por transformar madeira em arcos de violino, violoncelo, contrabaixo e viola da gamba, entre outros. A luz do sol que entra por uma grande janela com vista para a Rua Conselheiro Crispiniano, na zona central da cidade, é suficiente para que o artesão trabalhe. E o processo de construção é totalmente artesanal. As ferramentas são todas manuais, arrumadas em suportes sobre sua mesa, também de madeira. Cada pedaço da árvore, já cortado no tamanho certo, é desbastado, trabalhado e lentamente assume o formato do arco. O talão, onde o músico segura o instrumento, é feito de casco de tartaruga ou marfim. As crinas vêm de cavalos siberianos, criados especialmente para essa finalidade.

Não menos especial é a madeira que Silva trata com carinho. Raro e nobre, o pau-brasil é a estrela dessa atividade pouco conhecida, mas devidamente valorizada por quem faz música. A matéria-prima utilizada no ateliê vem de Pernambuco ou da Bahia – normalmente de estoques antigos, formados quando a legislação era menos rigorosa quanto à exploração da árvore, que já foi símbolo do País. Alguns dos trabalhos do arqueteiro são feitos sob encomenda. Outros ficam expostos em suas paredes, dividindo o espaço com pequenos suvenires de clientes satisfeitos: da partitura de uma canção escrita pelo compositor André Mehmari em sua homenagem a um bilhete manuscrito do grande violinista israelense Itzhak Perlman, contando como recebeu cumprimentos pelo arco. A pequena assinatura que deixa em cada peça mostra o orgulho do trabalho.

O SOM DA HISTÓRIA

Desde o século 15 o pau-brasil desperta o interesse dos colonizadores europeus, inicialmente por conta de sua pigmentação avermelhada, que permitia o tingimento de roupas. O tom era muito apreciado pela nobreza na época do Renascimento e simbolizava o luxo. O comércio se tornou um monopólio da coroa portuguesa, e os navios abastecidos com troncos da árvore eram atacados por corsários, tamanho o valor dado à sua pigmentação. Mas a madeira logo provou ser ainda mais útil.

Enquanto os fabricantes italianos de violinos e outros instrumentos se tornaram os mais importantes do mundo, graças ao talento de nomes como Antonio Stradivari (1644-1737), um dos maiores luthiers da história, os franceses assumiram a liderança na criação de arcos para esses instrumentos. François Tourte (1747-1835) foi pioneiro em perceber a qualidade do pau-brasil e responsável por diversas mudanças no formato dos arcos – as versões anteriores, usadas no período Barroco, não eram eficientes em novas técnicas que surgiram com os movimentos musicais posteriores. Trabalhando ao lado de virtuoses do instrumento, ele ajudou a definir o formato dos arcos utilizados até hoje por profissionais do mundo inteiro.

A madeira do pau-brasil conquistou os arqueteiros por possuir algumas características anatômicas que a tornam especial para a fabricação de arcos: rigidez e densidade ideais. Forte, mas também flexível para que possa ser moldada no formato adequado quando exposta ao calor. Em teoria, existem outras árvores capazes de fornecer madeiras com características dentro dos parâmetros necessários, como o cumaru (Dipteryx odorata) e algumas espécies do gênero Handroanthus, conhecidas popularmente como “ipês”. Mas a tradição ainda fala mais alto e essas “substitutas” não têm igual aceitação. “Existe um certo preconceito com essas madeiras que não possuem a mesma pigmentação. O ipê tem uma tonalidade amarelada e o cumaru, acastanhada. Só pela cor o julgamento da qualidade do arco é prejudicada”, afirma Eduardo Luiz Longui, pesquisador científico do Instituto Florestal cuja tese de doutorado explora justamente o potencial de árvores nativas na fabricação de arcos para instrumentos de corda.

Por esse motivo, o pau-brasil continua sendo explorado. Francisco Silva paga cerca de R$ 100 por cada baqueta, nome dado à vareta de madeira usada no processo de fabricação, já cortada a partir do pedaço mais nobre de cada tronco. O valor de um arco finalizado começa em R$ 1 mil. O arqueteiro compra as baquetas de vendedores licenciados, que lhe apresentam os documentos comprobatórios da legalidade daquela madeira. O problema é que nem todos fazem o processo dentro dos conformes. Em novembro de 2018, o Ibama apreendeu 20.804 arcos feitos ilegalmente. Nove empresas apresentaram irregularidades e duas foram embargadas. No total, a operação desmontou uma serraria, apreendeu nove máquinas e emitiu 12 autos de infração, que somaram R$ 9,7 milhões.

Desde 2007, o pau-brasil foi incluído no anexo II da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), que estabelece as regras para o comércio controlado, evitando, assim, sua extinção. Atualmente, a madeira só pode ser extraída de planos de manejo ou de estoques antigos, desde que os vendedores apresentem a documentação necessária. Sua inclusão nesse anexo, o segundo de três graus regulatórios (o primeiro, mais exigente, só permite a comercialização em ocasiões excepcionais), foi feita para atender a demandas internacionais de regulação, permitindo a livre circulação das orquestras e de seus músicos.

FUTURO PARA A ESPÉCIE

Existem algumas iniciativas de preservação. A mais importante é feita pela organização International Pernambuco Conservation Initiative (IPCI), com sede nos Estados Unidos e escritórios na Alemanha e no Canadá. No Brasil, desenvolveu um programa em parceria com a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), que adota um sistema de conservação produtiva, em que as árvores fornecem o sombreamento necessário para o desenvolvimento do cacau. No programa atual, mais de 150 mil mudas já foram plantadas, sendo 50% destinadas à produção comercial, 30% para conservação da base genética e 20% para atividades educacionais, cívicas e culturais. Tudo isso ainda é pouco. O problema é o tempo necessário para que a árvore se torne adulta: trata-se de um ciclo de 50 a 70 anos. “Falta empenho de se pensar a longo prazo”, afirma Eduardo Luiz Longui. “Alguma empresa precisava apostar nisso, mesmo sabendo que não teria o mesmo lucro que obteria se continuasse plantando eucaliptos, por exemplo”, diz o pesquisador.

Segundo Longui, existe uma quantidade considerável de madeira circulando pelos mercados do mundo, suficientes para a produção de muitos arcos por um longo tempo. “Eventualmente, no entanto, vai faltar material”, afirma ele. Um agravante do pau-brasil é o pouco aproveitamento do tronco. Apenas 10% a 12% é destinado a arcos de alta qualidade. O resto é desperdiçado ou usado na fabricação de versões inferiores, voltadas a iniciantes. Um tronco de ipê, por outro lado, tem um aproveitamento muito maior por conta da homogeneidade da árvore, mas a tradição e o preconceito novamente prejudicam sua utilização.

Se falta interesse em sua conservação, não se pode dizer o mesmo quando o assunto é a centenária arte de construção de arcos. Francisco Silva trabalha com um aprendiz, que o ajuda na fabricação das peças, mas recebe constantemente mensagens de alunos que querem aprender o ofício. Por falta de tempo, o arqueteiro é obrigado a recusar os pedidos. E isso porque o violino e o violoncelo são instrumentos menos populares que o violão, por exemplo, assim como a música erudita. E, por mais que um arco possa durar décadas nas mãos de músicos, sempre é necessário fazer reparos, trocar as crinas. Ao contrário da madeira do pau-brasil, o ofício está longe de correr risco de extinção.

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