O segredo da fertilidade em Israel

Por Daniela Kresch, de Tel Aviv (Israel) A tradição judaica conta a história de Honi, o Desenhado


Edição 14 - 02.04.19

Por Daniela Kresch, de Tel Aviv (Israel)

A tradição judaica conta a história de Honi, o Desenhador de Círculos, que viveu no século I a.C. Após uma seca, ele desenhou um círculo no chão, ficou no meio dele, ergueu as mãos para o céu e jurou não se mover até chover. Surpresa, surpresa: choveu!

A fábula símboliza as dificuldades e a resiliência dos moradores dessa região do Oriente Médio onde, atualmente, está o Estado de Israel. Não é de hoje que a falta d’água tira o sono dos habitantes desse pequeno país com escassez crônica de chuvas, que caem por apenas três meses por ano. Israel é um dos 15 países nos quais há mais carência de água no mundo: menos de 500 metros cúbicos per capita/anuais. Para se ter uma ideia, no Brasil o número é 10 mil metros cúbicos.

Por algum motivo, a Terra Santa bíblica ganhou o apelido de “Terra do leite e do mel”. Mas, na realidade, está mais para um deserto semiárido e árido, onde só 20% da área é cultivável. O apelido atual talvez faça mais jus à realidade do século 21: “Startup Nation”, um país que é obrigado a inovar e empreender. “Eu costumava trabalhar com Shimon Peres”, conta Erez Ron, CEO da empresa de sensores agrícolas SciRoot, citando o ex-primeiro-ministro israelense. “Ele costumava dizer que a grande sorte de Israel é que é um país em que tudo falta. Não temos muitos recursos minerais. Quando você não tem nada, então você tem que desenvolver, você tem que pensar em inovações.”

Aplicando abordagens revolucionárias, os israelenses superaram as carências. A escassez de recursos naturais, a cultura de praticidade e o ecossistema acadêmico/industrial é a mistura de ingredientes que levou ao modelo atual de inovação. Aplicado na agricultura, transformou o território árido em um canteiro de inovações exportadas para o mundo todo. Hoje, Israel consegue produzir 95% de suas próprias necessidades alimentares, sem contar as exportações de frutas e legumes.

Entre as principais inovações desenvolvidas lá estão irrigação por gotejamento, reciclagem de águas residuais, sistemas computadorizados de alerta para vazamentos, geração de imagens térmicas para a detecção do estresse hídrico, controle biológico de pragas e novas variedades de frutas e vegetais. “Estamos desenvolvendo uma nova tecnologia que nos permite utilizar água com mais eficiência”, conta Victor Alchanatis, diretor do Instituto de Pesquisa Agrícola “Centro Volcani”. “Usamos a temperatura das folhas para preparar um índice que nos diz quanta água precisamos para plantar grãos integrais, muito melhores do que grãos normais, de acordo com os parâmetros dos agricultores. Assim, conseguimos ser seis ou sete vezes mais eficientes no uso da água em relação ao que éramos há 50 anos.”

Campos cultivados à margem do Mar da Galileia

REINVENÇÃO NO DESERTO

O setor agrícola de Israel é uma indústria altamente desenvolvida, embora sua importância na economia geral local seja relativamente pequena. Ao longo dos anos, Israel desviou de uma economia baseada na agricultura para uma industrializada mais sofisticada. Em 1979, a agricultura respondia por cerca de 6% do PIB. Hoje, é apenas 3%.

Tudo começou com as primeiras comunidades agrícolas coletivas, os kibutzim, no começo do século 20, antes mesmo da independência de Israel (1948). Imigrantes judeus europeus – a maioria identificada com o socialismo – deixaram as perseguições do Velho Continente para tentar se reinventar como agricultores na então chamada “Palestina”. Para eles, trabalhar a terra era símbolo dessa renovação pessoal e social, no contexto da luta pela criação de um Estado Judeu. Hoje, há 273 kibutzim no país (onde vivem 2,2% da população), além de 450 moshavim (3,1%) – a versão menos ideológica desse tipo de cooperativa.

Com trabalho árduo e uma pitada de ingenuidade, eles superaram as condições ambientais adversas e as transformaram em trunfos para a criação de negócios de impacto (e lucrativos). É o caso da Netafim, empresa que nasceu no Kibutz Hatzerim – no deserto do Neguev, sul de Israel –, famosa por inventar a irrigação por gotejamento, um sistema que fornece água diretamente à raíz da planta, reduzindo o consumo de água e incrementando a produção. “Em 1965, éramos um grupo de jovens agricultores no deserto e enfrentamos o obstáculo de escassez de água e um solo muito pobre”, conta Naty Barak, diretor de sustentabilidade da Netafim, hoje pertencente ao grupo mexicano Mexichem e uma das líderes globais em soluções para irrigação, com forte presença no Brasil. “Estávamos buscando uma solução. A ideia da irrigação por gotejamento, essa inovação, é distribuir água e nutrientes, às vezes chamamos de ‘nutrirrigação’, distribuir a quantidade certa diretamente para as raízes, onde e quando é necessária.”

Para muitos, o sucesso agrícola de Israel é atribuído a seu modelo de estreita cooperação entre os agricultores, a agroindústria e a pesquisa tecnológica (a área de pesquisa e desenvolvimento – P&D – representa cerca de 17% da alocação orçamentária de Israel para a agricultura). Erez Ron, um ex-piloto da Força Aérea Israelense que hoje trabalha com agricultura, conta que muitos acadêmicos fazem o caminho para a vida comercial. Investem em seus próprios desenvolvimentos tecnológicos para que se transformem produtos reais. Esse vai e vem entre academia, indústria e comércio diminui o tempo entre inovação e implementação de descobertas.

“Israel é um país pequeno, as pessoas se conhecem. Todos são práticos aqui”, explica Erez Ron. “Quando alguém está trabalhando na universidade e desenvolve alguma coisa, ele tem amigos que podem experimentá-lo no campo. Os professores querem ver suas ideias na prática. Faz parte da cultura daqui”.

RESPEITO À ÁGUA

A realidade também fez com que os israelenses corressem atrás de novas tecnologias de purificação de água – produto raro e disputado no Oriente Médio. O país é líder mundial em tratamento de água de esgoto para agricultura e um dos mais avançados em dessalinização de água do mar para consumo humano. Há um esforço nacional para reduzir a demanda por recursos hídricos escassos. Praticamente todo o consumo de água é medido. Como os preços da água aumentaram significativamente, há incentivos para conservar os recursos hídricos.

A maior preocupação é com o Mar da Galileia (Kineret, em hebraico), que supre 30% da água potável do país. O nível da água está tão baixo que muitos acreditam que o local bíblico – sobre o qual, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo caminhou sobre as águas – está 4 metros abaixo da chamada linha vermelha, o mínimo para voltar à normalidade, depois de anos de secas e de erros. Nos anos 1950, Israel construiu o que, na época, foi um “orgulho nacional”: o National Water Carrier, uma série de tubulações gigantes para levar a água do Mar da Galileia ao sul do país desértico. Se, por um lado, isso ajudou a desenvolver a agricultura no sul, por outro ajudou na crise pela qual o lado passa.

No começo dos anos 2000, Israel também embarcou em uma política ambiciosa de dessalinização de água do mar para evitar que faltasse água nas casas dos israelenses, que consomem 2,1 bilhões de metros cúbicos de água por ano. O país, no entanto, só tem à sua disposição 1,2 bilhão. Para resolver essa equação, é preciso economizar e ser criativo.

Atualmente, Israel tem cinco usinas de dessalinização (Sorek, Ashkelon, Ashdod, Palmahim e Hadera). A de Sorek é a maior do mundo, produzindo 624 mil metros cúbicos de água diariamente – 20% do consumo do país. Mais duas plantas serão completadas nos próximos anos. O objetivo é, em 2025, produzir 1,1 bilhão de metros cúbicos de água dessalinizada.

O processo de dessalinização envolve tecnologia de membrana, na qual a água salgada é empurrada para dentro de membranas contendo poros microscópicos. A água passa, enquanto as moléculas de sal maiores são deixadas para trás. A chave é capturar os microorganismos em água salgada antes que eles atinjam as membranas para minimizar a obstrução delas. Uma desvantagem da dessalinização é que ela consome muita energia (consumindo 3% da produção de energia elétrica de Israel) e um subproduto é água muito salgada.

Outra área de foco dos israelenses é a de tratamento de aquíferos no solo para reutilização de águas residuais tratadas. O Estado de Israel investe aproximadamente US$ 120 milhões por ano em assistência no desenvolvimento e reabilitação da infraestrutura de esgoto. Israel produz cerca de 470 milhões de metros cúbicos por ano de esgoto puro. Mais de 80% das águas residuais são destinadas para várias aplicações, como reúso na agricultura, na indústria e em plantações públicas. A Espanha, o segundo país mais avançado nesse tema, só recicla, para se ter uma ideia, menos de 20%. OS EUA reciclam apenas 1%. O estrume que sobra da água purificada é transformado quase totalmente em fertilizante biológico.

Todo o esgoto produzido por Tel Aviv e outras seis cidades do centro do país, por exemplo, é coletado por uma empresa coletiva, a Shafdan, em Rishon LeZion, e reaproveitado para fins agrícolas no deserto do Neguev. A Shafdan coleta as águas residuais, filtra duas vezes – a segunda com micro-organismos — e as deixa tão limpas que é seguro até mesmo bebê-las, embora sejam utilizadas apenas para a agricultura. Com ajuda de 120 km de tubos subterrâneos, a empresa coleta e limpa 400 mil metros cúbicos de esgoto diariamente, o que significa que mais de 50% da água utilizada para a agricultura, em Israel, é oriunda de águas recicladas. “Nosso produto é distribuído gratuitamente para os agricultores”, diz Yuval Selah, engenheiro-chefe da Shafdan, explicando que a água purificada não pode ser usada em plantações de frutas e legumes que crescem junto à terra, mas é liberada para alimentos que crescem em árvores, campos de algodão e de outros produtos nãoalimentícios e cultivo de flores.

Na primeira visita de uma autoridade do governo Jair Bolsonaro a Israel, em janeiro deste ano o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, foi a cinco usinas de dessalinização e estações de tratamento de água e esgoto no país. O objetivo foi colher informações e estudar se as tecnologias israelenses podem ou não ser implementadas no Brasil. “Ele veio como um mensageiro de Bolsonaro em busca de soluções para a questão da água no Nordeste e muitos outros tópicos. Foi um prólogo para a visita do presidente Bolsonaro, agora em abril”, diz Modi Ephraim, vice-chanceler de Israel para América Latina e Caribe.

EXPORTAÇÃO DE TECNOLOGIA

Pontes tinha como foco principal as usinas de dessalinização, mas pode tirar grandes lições também do modelo de funcionamento do ecossistema de inovação da Startup Nation, que além da Netafim gerou empresas com alcance global no agronegócio, como a fabricante de defensivos Adama, hoje parte do grupo ChemChina, que também adquiriu a suíça Syngenta. Com produtos desenvolvidos a partir da estreita relação entre agricultores e pesquisadores, a companhia inovou na formulação de produtos genéricos e ganhou espaço em vários países, inclusive o Brasil.

Na nova safra de AgTechs, outras empresas agrícolas israelenses têm despertado atenção internacional. Entre elas está a plataforma de inteligência Taranis, que utiliza imagens de satélite, inteligência artificial, imagens aéreas, Big Data e análises produtivas para monitorar os campos, ajudando os agricultores a tomar as melhores decisões. Desenvolvida por Ofir Schlam, filho de agricultores que fez carreira como desenvolvedor de sistemas para a área de segurança, ela incorporou tecnologias de uso militar na solução de problemas da produção agrícola.

Outro exemplo é a BioView, que utiliza vespas predatórias para controlar outros insetos como um biopesticida. Desse modo, reduz a necessidade de pesticidas químicos em até 70%. Já a Groundwork BioAg utiliza fungos microscópicos para fazer com que as raízes das plantas absorvam mais nutrientes. O fungo penetra a raíz da planta e efetivamente expande essa raíz de modo subterrâneo.

Para o professor Uri Shani, ex-diretor da Autoridade de Águas de Israel (2006-10), a principal lição de Israel é outra. Mais além da tecnologia e do empreendedorismo, o que ajuda Israel a crescer é um nível mais baixo de burocracia e, principalmente, de corrupção. “Conheço muitas pessoas empreendedoras no Brasil. De verdade. O problema do Brasil é a burocracia. Em Israel, a burocracia é ruim, mas não como no Brasil. Fora isso, também há a corrupção”, diz Shani. “Eu sempre digo que se pode dividir o mundo de acordo com a relação entre impostos e corrupção. No final das contas, os dois são para o mesmo objetivo: receber serviços. A corrupção é mais eficiente, porque recebe-se um serviço direto e rápido. Mas, obviamente que, em nível nacional, é uma tragédia. Em Israel, apesar do que dizem, não há corrupção. Mesmo se tentam, é descoberto rapidamente. Creio que isso é a verdadeira chave do sucesso.”

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