Apetite global na diplomacia da comida

Por IVA VELLOSO Foi uma estreia tímida, com passos e palavras calculados. Em sua primeira apariçã


Edição 13 - 15.02.19

Por IVA VELLOSO

Foi uma estreia tímida, com passos e palavras calculados. Em sua primeira aparição nos grandes salões internacionais, o presidente Jair Bolsonaro fez um discurso econômico na abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), no dia 22 de janeiro. Em cerca de oito minutos no púlpito, conseguiu, porém, deixar algumas mensagens claras sobre a linha (muitas vezes tênue) em que equilibrará sua política externa. Prometeu maior abertura comercial ao mundo, disse que o Brasil é um dos países que mais preservam o meio ambiente e que a missão do seu governo é avançar na compatibilização entre a preservação e o desenvolvimento econômico. Também afirmou que as commodities são responsáveis, em grande parte, pelo superávit da balança comercial do País. Ao dedicar boa parte de sua fala às virtudes do agronegócio brasileiro, confirmou que um dos pilares do trabalho do Itamaraty nos próximos quatro anos estará na chamada “Diplomacia da Comida”.

O poder do Brasil para fornecer alimentos a um mundo cada vez mais demandante é reconhecido globalmente, mas raramente, nos últimos anos, pautou os movimentos do corpo diplomático brasileiro. Por isso, o discurso do governo, especialmente quando fala em abrir o Brasil ao comércio mundial sem alinhamento ideológico, tem sido recebido com euforia pelo agronegócio. “Vejo com otimismo essa agenda do governo. O agro tem muito alinhamento com as ideias do Ministério da Economia quando afirma que o Brasil é um país fechado”, diz Lígia Dutra, superintendente de Relações Internacionais da Confederação Nacional da Agricultura. Outros movimentos, como o anúncio, pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, de que será criado um departamento de Agronegócio dentro do Ministério das Relações Exteriores (MRE), também indica uma mudança de patamar do setor em uma das frentes mais relevantes para quem, pela vocação exportadora, está estreitamente vinculado à imagem internacional do País.

Durante o Fórum de Davos, a equipe de Bolsonaro pôde degustar sabores distintos da repercussão de palavras e atos nas arenas externas. As posições liberais expressas pelo presidente e seus ministros agradaram ao mercado. O problema é que nem sempre os discursos dentro do próprio governo estão alinhados e, de vez em quando, é preciso muito trabalho por parte dos diplomatas para jogar água na fervura, mesmo a provocada por declarações dos tempos de campanha. Antes de ser eleito, Bolsonaro afirmou que “os chineses queriam comprar o Brasil”. A declaração do então candidato criou um mal-estar com a China, contornado depois de um encontro entre o presidente e o embaixador chinês Li Jinzhang, logo após a eleição. A China é o principal parceiro comercial do Brasil atualmente. No agronegócio, segundo dados do Ministério da Agricultura, responde por 35% das exportações do setor. Isso equivale a cerca de US$ 35 bilhões. Não por acaso, um dos maiores temores do setor é que um eventual alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos, hoje em aberto conflito comercial com os chineses, repercuta na nossa balança comercial.

A aproximação do governo brasileiro com o Estado de Israel também vem gerando ruídos nas relações com importantes parceiros comerciais – no caso, países do mundo árabe. Ao anunciar a intenção de transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, Bolsonaro irritou os árabes. O burburinho aumentou durante a participação do presidente em Davos. Enquanto ele discursava, a Arábia Saudita comunicava que parte dos frigoríficos habilitados a vender carne de frango para lá haviam sido delistados.

A notícia fez o presidente da ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal), Francisco Turra, correr para Brasília para uma reunião com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e com técnicos da pasta para saber os reais motivos que levaram os sauditas a embargar parte das exportações de carne de frango brasileira. Uma das versões que circularam por Brasília era a de que a decisão da Arábia Saudita seria uma represália ao governo por causa da aproximação com Israel. Ou seja, um problema diplomático. O vice-presidente, Hamilton Mourão, que estava no exercício da Presidência, chegou a comentar o assunto.

Turra discorda dessa versão e atribui a decisão dos árabes a questões mercadológicas. “Ainda temos 25 empresas autorizadas a vender frango para a Arábia Saudita. Se fosse retaliação, todas teriam sido retiradas da lista”, argumenta. Essa também foi a avaliação feita pelo governo. Tanto o Itamaraty quanto o Ministério da Agricultura afirmam “não ter havido nenhuma medida prejudicial às exportações brasileiras como represália a ações diplomáticas”. No entanto, em Davos, o ex-secretário-geral da Liga Árabe, o diplomata egípcio Ame Moussa, em entrevista ao jornal Valor Econômico, considerou que o embargo da Arábia Saudita a frigoríficos brasileiros pode ser entendido como exemplo de represália.

A parceria comercial com os árabes não é tão grande quanto com a China, mas não pode ser desprezada. A carne de frango produzida pelo Brasil é um dos principais produtos exportados para os países árabes. A Arábia Saudita fica com a maior parte desse comércio. Só no ano passado eles compraram 6,9 milhões de toneladas da proteína. De acordo com o Ministério da Agricultura, pelo menos 207 mil toneladas de frango, ou 3% do total, deixaram de ser embarcadas para o país árabe com o embargo.

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo

AMBIENTE COMPLEXO

No comércio internacional qualquer problema pode gerar um prejuízo de bilhões ao país. E, na diplomacia da comida, qualquer deslize pode se transformar em uma barreira não tarifária capaz de justificar pressões de compradores e até a suspensão de encomendas. Por isso, os diplomatas brasileiros terão que enfrentar muitas batalhas para garantir que o Brasil continue sendo um dos maiores players no agronegócio mundial. Um dos temas sempre presente nas mesas de negociação, especialmente junto à União Europeia, será o meio ambiente. Os países europeus, sempre preocupados em defender a posição de seus produtores – menos eficientes e com dificuldades de concorrer com os brasileiros –, têm cobrado do Brasil um maior compromisso com a preservação ambiental, especialmente em relação aos biomas amazônico e do cerrado.

O antídoto a essa “barreira ambientalista” tem sido difundido pelas equipes responsáveis pelas negociações pelo lado brasileiro. O secretário de Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, Orlando Ribeiro, afirma que, entre outras coisas, pretende mostrar aos negociadores internacionais os dados da Embrapa Territorial sobre a agropecuária brasileira, entre os quais o de que 66% das florestas brasileiras ainda estão preservadas e que o País utiliza apenas 9% do seu território para a agricultura. Com isso espera convencer o mundo de que o Brasil vem cumprindo o seu papel.

O único senão do argumento é que esses números não são mais novidade para a comunidade internacional. Durante os últimos dois anos e meio, o então ministro da Agricultura, Blairo Maggi, percorreu o mundo participando de vários fóruns e rodadas de negociações internacionais apresentando os dados da Embrapa Territorial e do CAR (Cadastro Ambiental Rural). Maggi bateu firme nessa tecla, inclusive reforçando e aparelhando o contingente de adidos agrícolas junto a embaixadas e consulados brasileiros nos principais países importadores de nossa produção agropecuária.

A política de expansão do time de adidos deve ser mantida, conforme afirmou a ministra Tereza Cristina à PLANT, em entrevista concedida ainda durante o período de transição de governo. Eles terão, no entanto, de ser bastante hábeis, sobretudo para aplacar críticas provocadas por sinalizações feitas pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, que acenderam uma luz amarela perante o mundo. A mais preocupante é a possibilidade de o Brasil deixar o Acordo de Paris, assinado em 2015. A hipótese foi levantada por Bolsonaro, mas diante da reação dos próprios líderes do agronegócio – preocupados em mostrar aspectos sustentáveis da produção agrícola – ele retrocedeu e disse que “por enquanto” o País irá permanecer, embora não descarte por completo a possibilidade de deixar o tratado em outra oportunidade. Se o fizer, alertam os produtores, dará margem a embargos comerciais contra o Brasil e o agro será um dos setores mais afetados.

O Presidente da República, Jair Bolsonaro,durante reunião do Conselho Internacional de Negócios no Fórum Econômico Mundial em Davos

Outro ponto delicado que poderá criar embaraços ao agronegócio brasileiro, e para o qual governo e iniciativa privada devem estar preparados, é a delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista, da JBS. Segundo informações divulgadas na época pela imprensa, eles teriam apresentado uma lista com os nomes de cerca de 300 fiscais que supostamente receberam “horas extras” da empresa. A delação foi assinada há pouco mais de um ano e a famosa lista ainda não apareceu. Mas a possível divulgação dos nomes de fiscais pode abalar mais uma vez a credibilidade do sistema de fiscalização sanitária do País, que sofreu danos após a Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, deflagrada em março de 2017. Na época o Brasil não chegou a perder mercado, mas o Ministério da Agricultura teve que dar muitas explicações dentro e fora do País.

A Secretaria de Relações Internacionais do Mapa, que trabalha em parceira com o Itamaraty nas negociações do agro com outros países, garante que já está preparada para enfrentar esse problema. Para Ribeiro, “as irregularidades encontradas foram amplificadas pela mídia e afetam um percentual pequeno do universo de servidores”. De fato, o Ministério da Agricultura conta com um quadro de mais de 11 mil servidores, sendo cerca de 2 mil fiscais agropecuários. O setor privado também diz estar pronto para a batalha. O presidente da ABPA revelou que o setor já preparou uma campanha forte para enfrentar esse problema. “Estamos fazendo treinamento, capacitação, orientação aos nossos empresários para aplicação das melhores práticas de sanidade, tudo em sintonia com o Mapa”, afirma Francisco Turra.

QUARTEL-GENERAL

Boa parte dessas questões, que antes eram tratadas pelo Ministério da Agricultura, passará agora a ser endereçada também ao recém-criado Departamento de Promoção do Agronegócio no Itamaraty. Antiga demanda do setor, o órgão irá funcionar com duas divisões: uma voltada para temas de política comercial na área agrícola e outra dedicada à promoção das exportações agrícolas. O MRE informa que as duas áreas vão trabalhar de modo integrado entre si e “em estreita cooperação com o Ministério da Agricultura e a Apex”.

“Nenhum governo teve uma iniciativa dessas antes”, comemorou o presidente da ABPA. Para Turra, “é fundamental o país investir em sua vocação econômica, e a do Brasil é o agro”. “Essa medida já deveria ter sido tomada”, diz o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que vem acompanhando de perto todos os passos do governo em relação ao agro dentro e fora do Brasil. Para Moreira, porém, o novo departamento do Itamaraty precisará intensificar a atuação do Brasil lá fora. “Temos que ser mais agressivos nas negociações comercias.”

Por isso, além da criação do novo departamento no Itamaraty, algumas medidas estão sendo propostas para ampliar o comércio com outros países. Uma delas é a promoção de um workshop para falar sobre temas do agro como a questão da sanidade animal e vegetal, avanços tecnológicos, genética e a conservação do meio ambiente. O evento está sendo articulado pelo Ministério da Agricultura em parceria com a FPA e será voltado a jornalistas, empresários, embaixadores e investidores. A previsão é de que seja realizado em São Paulo durante o mês de abril.

Para Moreira, a maior guerra que a diplomacia brasileira enfrentará para ampliar o comércio exterior será a da comunicação. “Nosso país vem sendo constantemente atacado por causa da questão ambiental, mas não falam a verdade. Temos que rebater esse discurso de forma efetiva”, diz. Para o deputado, é preciso que o Brasil rebata todas as críticas de forma contundente. A ministra Tereza Cristina também já manifestou preocupação com essa questão e prepara missões ao exterior para expandir o comércio dos produtos brasileiros. Ásia e Europa serão os primeiros destinos, mas as datas ainda não foram definidas. Ribeiro informou que já existem algumas agendas sendo trabalhadas, mas confirmou, por enquanto, a ida da ministra ao Japão para a reunião de ministros da agricultura do G-20, que ocorrerá em maio.

MERCADOS PRIORITÁRIOS

A agropecuária brasileira exporta para mais de 150 países. No ano passado, o setor bateu o recorde nominal de US$ 101,69 bilhões. O governo e o setor privado esperam que esse valor seja ainda maior em 2019. “A agricultura brasileira exporta de maneira pujante para todas as regiões do planeta. Vamos ajudar a fortalecer a vocação universal das exportações brasileiras do agronegócio, buscando proativamente reforçar nossas relações comerciais, sem nenhum viés ideológico”, diz o Itamaraty.

O setor também se mostra otimista e já sonha com a abertura de novos mercados. O presidente da Abrafrutas (Associação Brasileira de Frutas), Luiz Roberto Barcelos, espera que o setor da fruticultura faça com a região Nordeste o que a soja fez com o Centro-Oeste. “Temos um espaço muito grande para expandir. Somos o terceiro maior produtor de frutas do mundo e estamos em 23º lugar em exportação”, diz Luiz Roberto. Além da Ásia, os produtores de frutas ambicionam conquistar o mercado norte-americano.

A aproximação do governo Bolsonaro com Trump tem feito Luiz Roberto projetar novos negócios. “Os Estados Unidos são um mercado muito promissor. Temos uma proximidade geográfica que facilita as exportações.” Atualmente, de acordo com dados da Abrafrutas, são exportadas 848,5 mil toneladas de frutas por ano. Manga, melão e limão são os principais produtos. Grande parte produzida na região Nordeste.

Lígia Dutra, da CNA, compartilha da visão da Abrafrutas. Ela acha que, apesar de concorrerem no mercado do agro, Brasil e Estados Unidos são complementares e podem ampliar ainda muito a pauta de exportações. Para ela, no entanto, o mercado prioritário do agro atualmente é a Ásia. “Queremos que o governo tenha um olhar mais atento ao continente asiático.” Para negociações bilaterais, o foco principal da CNA é a Coreia do Sul. “É um país que tem um grande consumo, eles importam muito produto do agro”, disse. No ano passado a Coreia do Sul abriu a importação de suínos e mangas do Brasil, mas os números ainda são pequenos. Os coreanos compram muito da Austrália e dos Estados Unidos, nossos principais concorrentes.

O trabalho da diplomacia agrícola será garantir o pragmatismo comercial. “As questões políticas e ideológicas a gente pode administrar de forma que não atrapalhe a questão comercial”, diz a superintendente de relações internacionais da CNA. “A gente quer o pragmatismo. Vender pra quem quer comprar.” O recado do setor ao novo governo é simples e direto: a diplomacia abrindo novos mercados aos produtos brasileiros.

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