A REVOLUÇÃO ECONÔMICA DA SOJA

Por AMAURI SEGALLA Uma conhecida máxima no campo da ciência diz que estudos acadêmicos só têm v


Edição 11 - 27.09.18

Por AMAURI SEGALLA

Uma conhecida máxima no campo da ciência diz que estudos acadêmicos só têm valor se desafiarem o senso comum. Do contrário, eles se prestam apenas parar e forçar velhas teorias – ou seja, aquilo que já sabe. Nesse aspecto, uma extenuante pesquisa realizada por três professores especializados na área de finanças tem méritos de sobra. O curioso é que, mesmo sendo do campo financeiro, seus esforços foram direcionados para o agronegócio. A escolha não poderia ter sido mais apropriada. Jacopo Ponticelli, professor adjunto de finanças da americana Kellogg School, uma das mais importantes escolas de negócios do mundo; Bruno Caprettini, da Universidade de Zurique, referência em ensino na Suíça; e Paula Bustos, do Centro de Estudos Monetários e Financeiros da Espanha, instituição consagrada na área de inovação, resolveram analisar o impacto da cultura de soja geneticamente modificada na economia brasileira. Conclusão: os efeitos econômicos do plantio não só foram positivos como se alastraram para os centros urbanos e áreas industriais. O resultado do estudo, portanto, se opõe ao que os especialistas convencionais imaginavam. Inovações no campo beneficiam, sim, toda a sociedade e não apenas pequenos grupos de fazendeiros e agricultores.

O estudo dos três professores começou com uma premissa: na primeira década dos anos 2000, um dos períodos mais prósperos da história brasileira recente, o que teria levado trabalhadores das fazendas a migrar para o setor industrial? As novas oportunidades econômicas das grandes cidades atraíram os homens do campo ou foram as mudanças na agricultura que os forçaram a trocar a terra pelo asfalto? Os criativos pesquisadores suspeitavam que a resposta tinha a ver com a soja. Ou, para ser mais preciso, com a soja geneticamente modificada. Por mais estranho que  isso possa parecer, eles estavam cobertos de razão.

É preciso voltar no tempo para entender a linha de raciocínio dos profissionais. Em 2003, o Brasil legalizou, em meio a uma enxurrada de protestos de Ongs e movimentos sociais, a revolucionária semente de soja Roundup Ready (RR), desenvolvida pela Monsanto. Naquela época, como agora, a empresa era alvo de manifestações sob o argumento de que uma semente modificada poderia causar danos à saúde. Chamada de “Soja Maradona”, uma singela homenagem dos cientistas que a desenvolveram a um dos maiores jogadores da história do futebol, a semente foi criada com uma única missão: resistir a herbicidas, sobretudo os da família do glifosato.

Antes da soja transgênica, os agricultores sofriam para controlar o apetite das ervas daninhas que infestavam as plantações. Até então indomáveis, elas obrigavam os fazendeiros a realizar um penoso processo de limpeza dos campos no início de cada estação de plantio. Se isso não fosse feito, as lavouras estariam provavelmente condenadas, gerando prejuízos irreparáveis. Mesmo o trabalho para limpar os campos causava perdas financeiras. Era preciso contratar trabalhadores para o serviço na mesma quantidade exigida para o plantio. É óbvio que o investimento necessário para realizar o processo recaía sobre o preço da soja, afetando a competitividade de toda a cadeia produtiva.

A soja geneticamente modificada alterou essa lógica. Antes dela, os agricultores não conseguiam controlar as ervas daninhas por meio da aplicação de herbicidas sem matar também as suas plantações. Como a Roundup Ready resistia aos produtos químicos, a limpeza dos campos para a retirada de ervas daninhas deixou de ser necessária. Isso, por sua vez, permitiu a produção da mesma quantidade de soja em menos  tempo e com um número menor de trabalhadores para realizar o serviço. Naquela época, em 2003, analistas do óbvio disseram que esse movimento beneficiava apenas os donos da terra, já que milhares de funcionários seriam descartados. Além disso, os centros urbanos e industriais não teriam nada a ver com a história, pois sua estrutura econômica independia do que acontecia no campo. Eles estavam errados.

Ao ser informado a respeito das aplicações da soja RR no Brasil, o professor Jacopo  Ponticelli teve a ideia de fazer a sua pesquisa. Ele achou que o caso representava uma oportunidade para dissecar a forma como os países se desenvolvem e como se dão as transições das economias agrárias para as industriais. “Eu queria testar a teoria de que um aumento na produtividade agrícola poderia dar início a esse processo”, contou ele em um artigo escrito para a Kellog School. A partir da análise de uma infinidade de dados, incluindo movimentações demográficas, índices de produtividade,  crescimento econômico das cidades e até níveis de financiamento e crédito, Ponticelli e seus colegas da academia chegaram a duas conclusões principais.

A primeira delas:  empresas de todo o Brasil colheram os benefícios da semente modificada. De acordo com o pesquisador, a nova soja liberou trabalhadores rurais para outros empregos, o que foi fundamental para que o setor  industrial brasileiro se desenvolvesse. A segunda conclusão: o advento da Roundup Ready enriqueceu os agricultores e isso foi ótimo para o Brasil. Capitalizados, eles colocaram mais dinheiro nos bancos, o que levou os centros urbanos a ter acesso a crédito a menor custo. Esses recursos, diz Ponticelli, não foram reinvestidos apenas no campo,  mas também permitiram que as instituições bancárias financiassem um número maior de empresas do setor manufatureiro e de serviços. O ciclo, portanto, estava completo, com vantagens substanciais para toda a sociedade brasileira.

Entre 2000 e 2010, a economia do Brasil cresceu mais de 40%. É consenso entre os especialistas que boa parte do avanço se deve ao desenvolvimento da indústria nacional. Esse avanço, segundo o estudo liderado pelo catedrático da Kellog School, tem fortes conexões com a soja geneticamente modificada. “O aumento da produtividade agrícola repercute por toda a economia, fortalecendo o setor manufatureiro e direcionando o capital para os centros urbanos onde novos setores tendem a se desenvolver”, afirmou o professor. Em outras palavras: uma coisa está diretamente ligada a outra. Se há inovação no campo, ela provoca reflexos positivos na cidade. Se a produtividade agrícola aumenta, a indústria se fortalece.

Para Ponticelli, duas razões principais explicam a migração do trabalho agrícola para o industrial. Ele chama a primeira  delas de “teoria de atração”, que consiste no modelo clássico. Funciona assim: uma economia em crescimento aumenta a renda das pessoas. Com mais dinheiro disponível, elas compram mais produtos manufaturados. Para fabricá-los,  as indústrias precisam de mão de obra. Onde há ampla oferta de trabalhadores? No campo. Nesse processo, o setor industrial “atrai” os profissionais da agricultura com a promessa de salários melhores. A segunda explicação foi chamada por Ponticelli de “teoria da expulsão”. Nesse caso, a mudança acontece quando uma nova tecnologia torna a atividade agrícola mais produtiva. O avanço da produtividade leva a um efeito imediato: menos pessoas são necessárias para realizar a mesma quantidade de trabalho. Essas pessoas acabam sendo “expulsas” da agricultura e precisam encontrar emprego em outro lugar – e recorrem então ao setor industrial. 

Qual fator foi decisivo para explicar a transferência maciça de trabalhadores do campo para as áreas urbanas,  movimento esse que levaria ao forte crescimento econômico verificado entre 2000 e 2010 no Brasil? Para encontrar a resposta, a equipe liderada pelo professor  Ponticelli analisou uma montanha de dados. Eles cruzaram indicadores sobre o clima e as características do solo para determinar a quantidade adicional de soja que cada região brasileira ganharia com a semente Roundup Ready. Ao mesmo tempo, o time de pesquisadores usou dados  do censo demográfico para calcular como a força de trabalho de cada região mudou após a aprovação da semente geneticamente modificada. O que eles descobriram confirma a suspeita inicial: “a teoria da expulsão” é a mais correta para explicar o avanço econômico brasileiro. “As áreas mais propensas a adotar a tecnologia das sementes modificadas experimentaram uma diminuição na parcela  de pessoas que trabalham na agricultura e um aumento no total de profissionais que atuam na indústria”, afirmou Ponticelli no artigo. “Isso sugere que as pessoas saíram de um setor e entraram em outros.”

O interessante no processo é o impacto  financeiro provocado pela soja transgênica. Os trabalhadores que trocaram o campo pela cidade passaram a ganhar mais. Por consequência, ampliaram o seu nível de consumo, o que beneficiou as indústrias.Ao mesmo tempo, o aumento da produtividade valorizou a terra – o solo passou a produzir quantidades maiores de soja com custos menores –, o que enriqueceu os agricultores. Basta seguir o dinheiro para entender o que aconteceu. À medida que os fazendeiros depositavam a riqueza recém-descoberta em contas correntes e aplicações financeiras, os bancos passaram a ter mais recursos disponíveis para conceder empréstimos e ajudar as empresas das cidades a crescer. “Com isso, ficou claro que a produtividade agrícola gera desenvolvimento”, escreveu o professor Ponticelli.  

Essa era a percepção geral, mas faltava comprovar com  estatísticas o destino das novas reservas de capital. Foi aí que os autores do estudo realizaram um trabalho ainda mais impressionante. Eles obtiveram dados detalhados do Banco Central brasileiro a respeito dos depósitos em cada agência bancária do País, transferências de recursos entre elas e os históricos de empréstimos recebidos pelas empresas. A riqueza de dados permitiu rastrear a origem e o destino do dinheiro. Todas as suspeitas foram confirmadas.  Os pesquisadores descobriram que uma parcela ínfima dos empréstimos permaneceu nas comunidades rurais. Para cada real dos lucros da soja ue os agricultores depositavam nos bancos, apenas 0,5% voltava como empréstimo para as empresas agrícolas. Enquanto isso, 48% dos lucros do plantio da soja modificada foram destinados para empréstimos às empresas do setor de serviços e 40% para as indústrias. Com os resultados nas mãos, eles tiveram a certeza de que os benefícios da atividade agrícola se espalharam por todo o País, principalmente para os grandes centros urbanos, que concentram as companhias de serviços e o setor industrial. A conclusão era óbvia: a soja geneticamente modificada ajudou a modernizar toda a economia brasileira.  

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