Uma aliança do agro contra o câncer

Por Cilene Pereira e Cláudio Gatti (Fotos), de Barretos (SP) Se não fosse pelo cabelo raspado, ser


Edição 10 - 08.08.18

Por Cilene Pereira e Cláudio Gatti (Fotos), de Barretos (SP)

Se não fosse pelo cabelo raspado, seria difícil imaginar que a menina Lívia Faria, de 2 anos, luta contra o câncer há sete meses. Diante da televisão da sala de recreação da unidade infantil do Hospital de Câncer de Barretos – Hospital do Amor, localizado em Barretos, no interior de São Paulo, Lívia dança concentrada para tentar acompanhar os movimentos que a aranha da música da Dona Aranha faz na tela. Nada tira sua concentração, nem mesmo as brincadeiras das outras crianças, que, como ela, enfrentam desde cedo o desafio de vencer a doença que só neste ano atingirá mais 600 mil brasileiros, segundo o Instituto Nacional do Câncer. No espaço onde Lívia dança enquanto espera por mais uma consulta reina uma bagunça gostosa feita nos brinquedos e nas mesas de pintura e desenho. De vez em quando, o riso fica alto com a presença vibrante do Mazinho, o recreador que há anos enche o lugar de alegria e fascina as crianças.

A família Souza, de Sertanópolis (GO): todo o atendimento é gratuito

Esperança, resistência e determinação são os sentimentos que mais se percebe nos corredores modernos do Hospital do Amor. São eles que movem os pacientes e seus familiares. E também os administradores da instituição, um projeto que se tornou referência nacional, mas que também enfrenta desafios diários pela sobrevivência. A excelência custa caro e tem sido mantida graças a ações que envolvem a comunidade, artistas e, mais recentemente, também empresas – a maior parte delas ligada ao agronegócio. Graças a engenhosos modelos de contribuição, elas têm ajudado a reverter um quadro que parecia muito grave.

CORAÇÃO BRASILEIRO

A unidade infantil é uma das cinco que compõem o Hospital do Amor. Além dela, há o Hospital Geral de Barretos, o Hospital de Cuidados Paliativos, o Hospital Geral de Jales e o Hospital Geral de Porto Velho. O complexo também tem nove unidades fixas de prevenção (Barretos, Campinas, Campo Grande, Fernandópolis, Ji-Paraná, Juazeiro, Lagarto, Nova Andradina e Porto Velho) e 18 unidades móveis – carretas equipadas com mamógrafos que rodam o Brasil realizando exames de mamografia e de colo uterino, equipadas com o que há de mais moderno. Um novo hospital está sendo construído em Palmas, no Tocantins, e mais dois centros de prevenção encontram-se em montagem em Rio Branco, no Acre, e em Macapá, no Amapá.

A instituição mantém parcerias com entidades internacionais de primeira linha, como o Hospital M.D. Anderson Cancer Center, em Houston, no Texas, e o Hospital Infantil St. Jude, em Memphis, no Tennessee, ambos localizados nos Estados Unidos e apontados entre os primeiros do mundo no combate ao câncer não só pela qualidade do tratamento, mas também pelas inovações e informações resultantes da ciência primorosa que produzem. Faz parte ainda da iniciativa um centro de treinamento em técnicas minimamente invasivas e cirurgia robótica – um dos caminhos mais modernos da medicina usados hoje para tratar com o mínimo de agressão possível ao organismo.

Aberto em parceria com o instituto francês Ircad, com sede em Estrasburgo, o centro dispõe de estações (mesa cirúrgica e aparelhos) para a realização de cirurgias em animais, equipadas com o que há de mais sofisticado no mundo para essa finalidade. A reunião de tantos serviços faz do complexo um dos mais importantes serviços de referência no tratamento e na geração de conhecimento sobre a doença no Brasil.

Os números do Hospital do Amor são gigantes. São feitos mais de 6 mil procedimentos por dia, realizados por um time de 380 médicos, 230 residentes e 3,5 mil funcionários. Todo o atendimento é gratuito e a maior parte dos pacientes chega de das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde a assistência pública é ainda mais precária do que a oferecida no Sul e no Sudeste. São pessoas como a Lívia, que chegou com a mãe, Elenir Faria, vinda de Anastácio, no Mato Grosso do Sul, no fim do ano passado logo depois de ser diagnosticada com rabdomiossarcoma (tumor em células que originam os músculos esqueléticos). “Em 15 dias ela conseguiu ser atendida aqui”, conta Elenir. Outro exemplo é a família de Maria Célia, 12 anos, portadora de osteosarcoma (câncer ósseo). A garota mora em Serranópolis, em Goiás, com a madrasta, Auralice de Souza, o pai, Jairo Cunha, e os irmãos, Arthur, Alice e Amanda. Desde janeiro do ano passado ela faz o tratamento em Barretos, onde recebe o que há de melhor em assistência médica, nutricional, psicológica e educacional para seguir firme enquanto batalha contra a enfermidade. “Continuo estudando”, diz Maria Célia, que recebe o conteúdo das aulas e orientação enquanto está internada, como se estivesse na sua escola. “E passei de ano.”

LEGADO DE GENEROSIDADE

Henrique Prata: missão herdada dos pais foi levada adiante, apesar das dificuldades

Todo o atendimento é gratuito. Sempre foi assim, desde que o complexo nasceu, na década de 1960, fundado pelo casal de médicos Paulo Prata e Scylla Prata. É uma vocação que está no DNA do Hospital do Amor e não foi abalada nem mesmo quando a instituição passou por dificuldades financeiras graves, na década de 1980. Henrique Prata, um dos filhos do casal, assumiu a administração do hospital com o objetivo de sanear as contas para que a sangria de dinheiro fosse interrompida. Inspirado pelo trabalho dos pais e por uma forte devoção católica, Henrique decidiu continuar com o hospital e saiu a campo com ainda mais vigor para aumentar o volume de doações que ajudava a manter o funcionamento do hospital.

O que a instituição recebia do Estado não chegava nem perto do que era preciso. O jeito era contar com a solidariedade da população, de empresários que contribuíam, por exemplo, fornecendo bois para leilões, e, aos poucos, de artistas famosos que entenderam a importância do que se fazia ali. Sertanejos como as duplas Chitãozinho e Xororó, Jorge e Mateus e outras estrelas, como Ivete Sangalo e Xuxa, engajaram-se na ajuda e o hospital seguiu driblando as dificuldades, firme no propósito de oferecer tratamento gratuito e servir de polo formador de profissionais e de geração de conhecimento.

O problema é que, como ocorre com todas as outras instituições nacionais que dependem do Estado brasileiro, Barretos está vendo as contas ficarem ainda mais difíceis de serem fechadas nos últimos anos. A grave crise econômica do País reduziu os recursos destinados a áreas fundamentais como o cuidado à saúde e também o volume de doações. Ao mesmo tempo, fez crescer a procura por serviços gratuitos como o ofertado lá. “De 2016 para 2017, houve um acréscimo de 21 mil pacientes”, explica o pecuarista José Rubens de Carvalho, o Rubikinho.

Amigo de infância de Henrique Prata, o empresário está à frente desde outubro do ano passado do Agro contra o Câncer, um projeto que tem como objetivo sensibilizar as grandes empresas envolvidas no agronegócio e engajá-las em um programa consistente de doações que permita a sustentabilidade financeira do Hospital do Amor. Hoje, o déficit mensal é de R$ 22 milhões. Do gasto atual de R$ 37 milhões por mês, o SUS banca apenas R$ 15 milhões. “Sem a ajuda, corremos o risco de fechar as portas. Temos que arrecadar recursos por meio da participação das empresas”, afirma Rubikinho.

O esforço é para contar com a participação de todos os setores do segmento, de companhias relacionadas à área de produção de matéria-prima à agroindústria. Representantes dos setores da cana, da soja, do milho, do algodão, do café, entre outros, estão sendo procurados para integrar o projeto. De posse dos materiais de apresentação dos serviços do hospital, Rubikinho está batendo à porta à procura de ajuda. Já conseguiu o apoio de 35 empresas importantes, como o oferecido pelas empresas Minerva, Estrela, Marfrig, JBS, Naviraí, Usina da Pedra, Usina Ipê, Leite Piracanjuba e Zoetis, maior empresa farmacêutica veterinária do mundo. “Reconhecemos a grande relevância do Hospital do Amor na prevenção e no tratamento do câncer no País”, afirma Pablo Paiva, gerente de Produto da Linha de Antiparasitários e Vacinas Clostridiais para a Unidade de Negócios de Bovinos da companhia. A Zoetis decidiu participar cedendo ao hospital parte do lucro das vendas do Cydectin (medicação destinada ao tratamento de bovinos) entre junho e dezembro deste ano. “É uma grande satisfação unir a nossa equipe, nossos parceiros comerciais e os pecuaristas que usam o Cydectin nessa contribuição ao hospital”, completa Pablo.Outra companhia que aderiu ao Agro contra o Câncer é a Plena Alimentos. “Falamos sobre o projeto que a Plena tem com o Hospital do Amor aos pecuaristas com os quais negociamos gado. Perguntamos se eles querem doar R$ 1 do que pagamos da arroba do boi para ajudar nessa causa tão nobre. Quando eles aceitam, destinamos a doação para o hospital”, explica Wesley Lopes, gerente corporativo de compra de gado da empresa. “Conhecemos o trabalho do hospital de perto, por meio de visitas e de materiais que recebemos. Sabemos que o sucesso se deve à administração e à honestidade com que trabalham. A diretoria está muito envolvida em salvar vidas e é um prazer para a Plena contribuir para o sucesso desse trabalho”, afirma Wesley.

PARCERIA PERMANENTE

O projeto quer viabilizar uma forma de contribuição que seja permanente e faça render uma importância vital para as contas do Hospital do Amor a longo prazo. Para isso, buscou-se uma maneira de contar com o auxílio de acordo com os preços praticados por cada setor. A proposta apresentada prevê a doação de R$ 1 para cada boi abatido, R$ 0,03 por tonelada de cana vendida e R$ 0,20 por saca de café comercializada, por exemplo. “As doações pedidas são muito razoáveis, mas, com o volume de adesões, tornam-se valores expressivos. Estamos solicitando sempre um percentual da produção no momento da comercialização dos produtos”, afirma Rubikinho. “Não estamos pedindo uma doação única. Queremos parceiros fiéis.”

Criar um sistema que não sobrecarregue os doadores e permita um fluxo contínuo de doações é uma estratégia eficiente. E Rubikinho está otimista quanto ao apoio que receberá do agronegócio brasileiro. Em agosto, parte para uma maratona de encontros com representantes das empresas associadas ao mercado da soja. Vai levar, como sempre, o material apresentando a excelência do que é oferecido no hospital. A qualidade do serviço dos profissionais – de médicos a recepcionistas, de farmacêuticos a recreadores -, a sofisticação dos equipamentos disponíveis e a importância na pesquisa falam por si, claro. Mas observar crianças como Lívia e Maria Célia, ou o menino João Victor, 11 anos, portador de osteosarcoma que há quatro meses está em Barretos vindo de Araxá, em Minas Gerais, firmes e amparados enquanto lutam contra o câncer, não deixa dúvida sobre a importância da participação de todos para que o Hospital do Amor continue existindo.

TAGS: Henrique Prata, Hospital do Amor, Plant Positivo